quarta-feira, 6 de março de 2013

OS DONOS DO BEM: um artigo de Jorge Marques.

 

por Jorge Marques (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC, nem das associações que a compõem).

 

 

Interroguei-me muito este fim-de-semana ao ler algumas crónicas dos nossos melhores jornalistas e que considero são também bons pensadores.

E essas interrogações têm tudo a ver com o resultado das eleições italianas e com a diabolização do personagem Grillo; tem a ver com a manifestação inorgânica do 2 de Março, pura contestação e sem propostas concretas; tem ainda a ver com os riscos de ruptura do sistema político conhecido e a possibilidade de se entrar na maior confusão ou num beco sem saída?
 
Ao ler as várias crónicas, veio-me à memória uma das grandes lições de vida que me aconteceu na cidade de Salvador da Baía, primeiro pela mão de Jorge Amado e depois pelo meu próprio pé. De que se trata?

Existem na espiritualidade baiana um conjunto de entidades de origem africana e trazidas pelos escravos a que chamam Orixás. A Igreja Católica soube aproveitar essas figuras e através de um sincretismo religioso, associou-as a alguns nomes de santos, a Jesus Cristo e ao Diabo.

Entre essas entidades vou destacar duas delas, uma que tem o nome de Oxalá e representa o princípio da criação do mundo, a outra que é Exú e representa a transformação e a recriação desse mesmo mundo. Diz-se que Oxalá criou apenas, mas errou ao pensar que isso era bastante, que tudo havia de continuar assim mesmo, estático. De Exú diz-se que introduziu movimento, mudança, organizou o caos, deu sentido à desordem.

Quando a Igreja Católica fez o sincretismo destas duas figuras e dos respectivos significados, fez de Jesus Cristo o Oxalá e do Diabo fez o Exú, marcando assim e para que não ficassem dúvidas, a tradicional dualidade entre o Bem e o Mal.
 
Quer isto dizer, neste caso, que a construção do Bem e do Mal teve simplesmente a ver com a ideia de que há um criador que quer conservar a sua obra e isso é o Bem e o outro que quer dar dinâmica e mudança a essa criação e isso é o Mal. Neste jogo cruzado de interesses, os Senhores do Bem regularam sobre o que era o Bem e o Mal, ao ponto de considerarem que a escravatura, porque tinha a protecção da lei era parte desse bem e o combate da escravatura, personalizado em Exú/Diabo, ficava do lado do mal. Mas Exú não se ficou por aqui, teve a ousadia de questionar os rituais, afirmando que eles pouco valiam por si próprios, só valiam quando tinham verdadeiro significado.

Por tudo isto, percebe-se que Exú tenha ficado associado ao Mal, mas apenas porque discricionariamente uns senhores, por acaso aqueles que detinham o poder, decidiram o que era o Bem e o Mal.

Parece que se está a passar o mesmo nesta nossa ordem legalmente estabelecida e no nosso sistema de democracia representativa. Há uns senhores que a dominam e dela beneficiam e por isso decidiram catalogá-la como o Bem a conservar e diabolizam tudo o que se lhe opõe, tudo o que altere essa ordem estabelecida. Decidiram ainda que todas as forças que querem movimento, mudanças com significado, a verdade dos rituais, a transgressão à ordem estática, esses são as Forças do Mal. Também aqui o Bem se julga a si próprio e de forma arrogante entende que não precisa justificar-se, mesmo quando age mal e perde todo o significado real. É verdadeiramente paradoxal, mas parece-me que o Bem nos está a fazer muito Mal.

No entanto na filosofia baiana, na mais genuína, este problema esteve sempre resolvido, porque segundo eles o Mal não se opõe ao Bem, nada se opõe a nada, tudo se complementa. Criação e dinâmicas de mudança são por isso dois complementos, acabar uma coisa e começar outra também, a própria ciência nos diz que o caos gera sempre uma nova ordem.

No entanto nestas nossas cabeças judaico-cristãs, este acto de complementar não tem espaço, temos sempre presente essa luta entre os Bons e os Maus. Mas o que se está a passar é que começamos a ter dúvidas sobre o que é uma coisa e a outra e quando se instala a dúvida, iniciamos a procura de respostas por nós próprios, pensamos com a nossa própria cabeça. Começa aqui um período de grandes e criativas mudanças e de muita acção...

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